Recebi por e-mail, do próprio Professor Soffiati, um material muito interessante que fala da questão histórica, ambiental e turística. Com esse texto lembrei-me do nascimento do Bairro de Chapéu do Sol, onde somente a aristocracia rural banhava-se. Veja a matéria abaixo que é muito explicativa em vários pontos.
Foto: Praia do Chapéu de Sol - São João da Barra - RJ. Turismo medicinal através do uso da água iodada e areias monazíticas. Crédito: Andre Pinto.
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(Publicado com o título de Dois horizontes para os recursos hídricos brasileiros, em Ciclos nº 1. São Bernardo do Campo.: Associação Global de Desenvolvimento Sustentado, Junho de 2004)
ÁGUA E TURISMO
Arthur Soffiati
Desde os primórdios da humanidade, a água cumpre várias funções, além de manter o organismo em equilíbrio. Nas sociedades humanas de economia extrativista e de vida nômade, os ecossistemas aquáticos marinhos e continentais eram fonte de alimento, meio de higiene e via de comunicação.
Para as sociedades pré-urbanas de economia rural evida sedentária, a água, além dos usos anteriores, servia também para a irrigação agrícola edessedentação do gado. Por sua vez, as sociedades históricas viveram em estreita dependência da água, seja drenando seu excesso, seja irrigando os solos áridos para a agropecuária. Basta examinar as civilizações mesopotâmica, egípcia e andina em suas origens.
Por mais que os ecossistemas aquáticos marinhos e continentais fossem usados para a recreação, não se pode falar em seu aproveitamento para o turismo, visto que esta atividade nasce no ocidente, no século 19.
Em O Território do Vazio, um livro que já se tornou clássico, Alain Corbin demonstra que a praia deixou de ser um lugar de desembarque e de pescadores e passou também a ser apreciada pela aristocracia e pela elite intelectual como um território a ser freqüentado para banhos, caminhadas, cavalgadas e temporadas. A praia é criada pelo imaginário europeu no final do século 18 e merecerá obras literárias de prosa e poesia. Esta atração se estende por todo o século 19 e chega aos nossos dias. Há, porém, uma diferença significativa entre a maneira de olhar a praia nos séculos 18 e 19 em comparação ao século 20. O ponto de encontro entre os oceanos e os continentes foi incorporado à cultura européia como local para tratamento de doenças. Proliferaram as praias medicinais por toda a Europa e o mundo europeizado.
No Brasil, havia praias cercadas, com hotéis em que pessoas enfermas se hospedavam para recuperar a saúde. Acreditava-se que o sal e a água fria e limpa lavavam as doenças do corpo e da alma. Também os rios adquiriram este significado no imaginário ocidental. Gilberto Freyre, no intuitivo livro Nordeste, de 1937, analisa a relação da lavoura canavieira com as águas continentais. Diz ele que, na fase do engenho, que perdurou do século 16 ao final do século 19, o ser humano aceitou os rios com suas curvas e caprichos, sem macular em demasia suas águas. Nelas, banhavam-se nuas moças brancas e doentes pelo confinamento residencial e pelo uso de roupas inadequadas.
As casas, prossegue ele, tinham suas frentes voltadas para os rios, com trapiches por onde desembarcavam seus proprietários e agregados bem como visitantes. Era possível beber de suas águas sem filtração ou fervura, ainda que houvesse uma verdadeira aversão pelas águas paradas das lagoas e dos brejos. O advento da usina movida a vapor mudou a relação da agroindústria sucro-alcooleira com os rios. Pouco a pouco, as casas lhes viraram as nádegas, que passaram a despejar nas águas a calda quente e fétida resultante da produção do açúcar e do álcool.
Imagem: Engenho de Cana-de-Açúcar no período Colonial.
Só final do século 19 e princípio do século 20, as águas, já desrespeitadas pela sociedade industrial, passam a despertar interesse recreativo e turístico. Marcos Polette explica como um rio, uma lagoa e uma praia passam de paraíso a inferno. Primeiramente, aparece um ricaço numa praia rústica, habitada, no máximo, por comunidades tradicionais de pescadores. Suas belezas naturais motivam-no a conseguir um terreno por meios lícitos ou ilícitos, onde constrói uma casa para lazer.
O encanto do local leva-o a convidar amigos para passarem fins de semana ou temporadas. Esses também se interessam em adquirir um terreno e construir uma casa. O processo se repete e se multiplica. Os intrusos passam, então, a pleitear do poder público a pavimentação da estrada de acesso para facilitar a viagem. Por ela, começam a chegar aqueles que pretendem passar apenas um dia. Para atendê-los, aparecem os construtores de pousadas e de hotéis. Casas mais simples passam a ser construídas. A economia das comunidades tradicionais é desmantelada. Os primitivos moradores são empregados pelos donos de mansões, pela rede hoteleira e pelo comércio ou são expulsos do lugar.
Assim, o turismo autofágico acaba subtraindo das praias, rios e lagos a beleza que estimulou a sua ocupação. Depois de tornar insuportável o atrativo, os pioneiros ricos saem à procura de outros lugares para iniciar o mesmo processo.
Foto: Praia do Farol da Barra - Salvador - BA.
A crise ambiental da atualidade está levando à construção de um novo paradigma ou a uma nova atitude diante da natureza. Praias, rios e lagoas não são apenas as bordas do mar ou as margens que canalizam um curso d’água ou que encerram uma porção dela. São ecossistemas em que a água, posto que vital, é um dos componentes de um todo complexo incluindo solo, subsolo, estrutura geológica, clima e seres vivos. Como ensina a ecologia, os ecossistemas, por mais generosos que sejam, têm limites. Se estes são infringidos até o ponto de retorno possível, eles tendem a restabelecer o equilíbrio. Caso contrário, é preciso a intervenção humana para restaurá-los. Em resumo, os ecossistemas aquáticos marinhos e continentais são finitos e devem ser respeitados na sua singularidade. Eles não são depósito de lixo e esgoto. Habitam-no plantas, animais e outros organismos indispensáveis à sua saúde.
Estamos longe ainda de observar os preceitos do novo paradigma. A maioria das pessoas continua ainda desprezando a ética quando colocam os pés numa praia, num rio ou numa lagoa. Diante de nós, vislumbramos dois horizontes. Um deles com praias poluídas e rios e lagoas contaminados e secos. O outro consiste no esforço de mudanças culturais, de proteção aos ecossistemas aquáticos e de restauração dos que foram degradados por um turismo consumista e predatório.
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Professor da Universidade Federal Fluminense e doutor em ecohistória pela UFRJ.
*Obs: As fotos e ilustrações foram colocadas pelo autor do blog.
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