Mar Adentro
Litoral brasileiro sofre com avanço das águas do oceano: são dezenas de cidades, centenas de construções e milhares de pessoas atingidas
Texto: Silvânia Arriel | Fotos: Alexandre C. Mota
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Serafim Alves Barreto, que vigia a maré em Atafona, São João da Barra: “Hoje moro longe do mar”
Antes sem medo dele. Foram 44 anos de trabalho no mar, no vaivém das ondas que lambem o continente, demarcam seu espaço no planeta. Hoje em terra firme, o ex-pescador Serafim Alves Barreto vigia se a maré vai subir, seguir o ritmo de avanço de 21 metros nos últimos três anos em Atafona, distrito de São João da Barra, no estado do Rio de Janeiro. Sete metros espichados a cada 12 meses, num fenômeno repetido desde a década de 70 em proporções menores, sem aquecimento global, que puxou para as profundezas do oceano Atlântico seis ruas, 400 casas. Deixou outras, aos escombros, na superfície da terra, a vista, a exigir respeito ao ciclo natural de ir e vir, que se agiganta também em outros trechos atulhados de gente no litoral brasileiro, ameaça, faz estragos, numa luta desigual de força com o homem.
Protesto do mar Confira cidades atingidas pelas ondas na costa brasileira. Há locais, como Atafona, onde o mar avança 7 m por ano |
O que causa - Ação do homem: construções à beira-mar que impedem o vaivém natural das ondas, contribuem para mudar a direção de correntes marinhas e o aparecimento de erosões (diminuição do espaço de areia) e progradações (aumento)
- Fatores naturais: elevação da temperatura dos oceanos, da pressão dos ventos sobre o continente e do nível do mar
Praia superpovoada - 13 regiões metropolitanas
- 395 cidades, que representam 7% dos municípios do país
- 1 a cada 4 brasileiros vive nos 8.698 km do litoral
Construções no limite - 50 m do mar em direção ao continente em áreas urbanizadas e 200 m sem urbanização prevê o decreto federal 5.300 de dezembro de 2004
- Na Grécia são 500 m
- França, Turquia, Suécia e Noruega no mínimo 100 m
Fonte: Alberto Costa Lopes, gerente da Área Costeira e Marinha do Ministério do Meio Ambiente, Marinez Scherer, diretora técnica da Agência Brasileira de Gerenciamento Costeiro, Gilberto Pessanha Ribeiro, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UERJ) |
| Começo da destruição das casas em Atafona, na década de 1970 | Jogou água na Baía da Traição, na Paraíba, põe em risco construções em Recife, Olinda, Fortaleza, Santos, sugou praia em Marataízes e Conceição da Barra, no Espírito Santo, e vive de sentinela em Atafona, que quer dizer moinho. “Praticamente toda a costa marítima está vulnerável e preocupa”, afirma Alberto Costa Lopes, gerente da Área Costeira e Marinha do Ministério do Meio Ambiente. Ora com erosão, diminuição da faixa de areia que impulsiona o avanço do mar, e em menor incidência com a progradação, o aumento do tamanho das praias. “Ameaça ecossistemas, pessoas, atividades econômicas e cadeias produtivas, investimentos em prédios e infraestruturas.” |
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| Escombro de construção: mar avançou 21 metros em três anos | Em Atafona foram-se casebres, mansões, ruas, a capela de Nossa Senhora dos Navegantes, o prédio onde seria um hotel. Cavados lentamente na força perseverante das ondas. “A casa onde morava foi destruída aos poucos, a gente ia mudando de cômodo”, diz o pescador José Luiz Gonçalves. Até ser expulso da última parte e parar em outra construção, antes distante e hoje na beirada do mar.8 “Fico assustado, ainda mais se a geleira derreter.” Está numa área interditada de 800 metros, onde outras pessoas teimam em permanecer no que restou. |
| Sacos e folhas de coqueiro tentam barrar a areia sobre as casas | |
| Pichação em muro lembra o apocalipse, que se repete em outros locais | Da casa de quatro quartos, sala, copa, cozinha, ficou a garagem. “É onde a gente vive”, apresenta-se Oswaldo Moacir Estêvão Moté, que divide o espaço improvisado com a neta Maria Carolina. Era o vigia, agora o morador atento à subida das ondas, que atulham de areia quase o teto das construções, cobrem árvores. Sacos empilhados, folhas de coqueiro tentam preservar as residências, que deveriam estar desocupadas ali e na área do encontro do rio Paraíba do Sul com o mar, numa transgressão da lei dos homens e da natureza. “Tentamos transferir as famílias de lá, são 50, para conjunto habitacional, mas o lugar é cultural, antigo. É como retirar os moradores de Olinda”, explica Felício Medeiros Valiengo, coordenador da Defesa Civil de São João da Barra. |
| Árvores no meio da praia em Atafona: invasão das ondas | Não se sabe até quando poderão ficar à beira-mar deste distrito, com fama de fim de mundo. Por todos os lados que se ande há frases pichadas nos muros e escombros sobre o apocalipse, a volta de Jesus. “Aqui virou turismo da desgraça”, lembra o jornalista e escritor Carlos Sá. Sabe que não deveria ser. Estudos mostram que 50% do fenômeno é provocado por causas naturais e 50% pela ação do homem. Tem a ver com a velocidade do vento, que amplificou a energia das ondas e disparou o processo erosivo. Acelerado com o assoreamento do rio Paraíba, que diminui a vazão da água e de sedimentos no oceano e empurra o mar. |
| José Luiz Gonçalves: “Minha casa foi destruída aos poucos” | Neste início do ano, houve retração. “Mas o cenário é agravante. Essa situação deve ser momentânea, não há realidade para recuo”, diz o professor Gilberto Pessanha Ribeiro, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UERJ), que pesquisa a erosão costeira em Atafona. Detectou o que causa e o que deve ser feito: a retirada das famílias para que o mar desenvolva seu curso natural, sempre mutante, e o monitoramento das ondas, ventos, marés. A transferência das pessoas esbarra na cultura, lembra Valiengo, a medição é feita por aparelhos, pelo ex-pescador Serafim, o que sempre vai verificar como está a maré. |
| Oswaldo Moté, com a neta Maria Carolina: ficou a garagem | “Perdi três casas na ilha da Convivência. Hoje moro distante do mar”, conta seu Serafim. A ilha, aí, fica ao lado de Atafona, onde viviam 350 pessoas e atualmente cinco. Tudo mudou, se transforma, e deve modificar-se pela força do vento e a mão dos homens nos 8.698 km de costa brasileira, onde estão, um em cada quatro brasileiros, a maioria nas áreas urbanas dos 395 municípios estendidas entre o Maranhão e o Rio Grande do Sul. “Essa concentração, não só de população, mas também de atividades econômicas, leva à ocupação da orla marítima mais próxima à linha da praia, onde se verificam os impactos mais contundentes”, afirma Alberto Lopes. |
| Muro de pedra em Marataízes: tentativa de conter o mar | Estão aí para se ver, queixar, arrumar. Em Marataízes, as máquinas trabalham 24 horas para o aumento artificial de areia na praia Central, que se foi com a erosão, quase alagou prédios, casas, lojas, hotéis. “As ondas atravessaram a avenida Atlântica. Depois era só a maré crescer um pouco que a gente ficava assustada”, diz o morador Luiz Manoel da Silva. As obras reduziram o pânico: dois espigões, um em cada extremidade da praia, e três quebra-mares foram erguidos para domar as ondas. Contenção de pedra que se repete em Conceição da Barra, também no Espírito Santo, e traz a dúvida se vai segurar o avanço do oceano nestas cidades e prejudicar outros locais ao sul. “Não conheço as obras de lá, mas qualquer muro de pedra que impeça o movimento da areia, sua dinâmica natural, pode prejudicar as praias mais abaixo”, explica a biólogoa Marinez Scherer, diretora técnica da Agência Brasileira de Gerenciamento Costeiro. |
| Draga retira areia em alto-mar e lança na praia (foto abaixo) | O governo do Espírito Santo se cala. “A solução clássica de reposição de areia nas praias sujeitas à erosão não parece sustentável”, emenda o gerente da Área Costeira e Marinha do Ministério do Meio Ambiente. O diretor geral do Departamento de Estradas de Rodagem (DER-ES), Eduardo Mannato, não responde as perguntas. A solução para retrair o mar? Especialistas apontam o dedo para o limite das construções: não ultrapassar a área do movimento natural do oceano, que não segue só um curso, muda devagarzinho, vai mais além e passa por cima de anteparos. |
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Luiz Manoel da Silva: “As ondas atravessaram a avenida” |
“Nossa costa não é planejada, não se leva em consideração a fragilidade de áreas, como os manguezais, as dunas”, argumenta Marinez Scherer. Há de se reconstruir o imaginário de que viver à beira-mar se traduz em bem-estar, natureza, lazer, esporte. É preciso distanciamento, respeitar os caprichos do oceano. “Se confirmarem as previsões de subida do nível do mar, a situação vai piorar”, antevê a bióloga Marinez. Tem que vigiar, tratar bem, não aceitar briga com a natureza que, quando ameaçada, reage, e os homens, com toda a tecnologia, força, não conseguem contê-la.
*A matéria enviada a este blog foi uma cortesia do engenheiro Marco Lyra,especialista em dinâmica costeira, que reside no litoral do nordeste e que mantem contatos frequentes com Andre Pinto.
Um comentário:
André parabéns pela preocupação em levar boa informação aos moradores de Atafona.
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