Ontem foi o dia do agricultor e como homenagem à essa importante classe trabalhadora, busquei trazer para o blog uma curiosidade que há muito me atormentava. As estacas de caveira de boi nas propriedades rurais sanjoanenses.
Quem faz o circuito entre o centro da cidade de São João da Barra e passa por estradas vicinais como a do Bairro de Fátima, estrada da sopa, galinheiro, do confisco, etc, vê em algumas propriedades rurais o crânio de uma caveira de boi pendurada à um mastro - geralmente de bambu - em frente à entrada das mesmas.
Sempre tive curiosidade de saber o por que fazem isso na zona rural e agora consegui uma resposta fundamentada para tal.
O COSTUME
Nas plantações os lavradores costumam fincar, numa estaca, uma caveira de boi, pois acreditam que afasta mau-olhado e resguarda a plantação contra as pragas, as geadas, as inundações, enfim, afugenta da lavoura todas as ameaças.
Essa superstição está generalizada em toda a área agrícola e os lavradores usam-na em qualquer lavoura (cana de açúcar, café, algodão, mandioca, milho, etc.).
É uma espécie de amuleto agrícola, tido como de grande eficácia.
É possível que essa superstição tenha raízes remotas. Partindo daí é que chegamos a uma solução satisfatória. Qual o significado dessa relíquia fúnebre?
A caveira (outra não pode ser a resposta) indica o testemunho do sacrifício do boi. Esta usança parece-nos, portanto, uma sobrevivência do vetusto rito de sacrifício de touros, rito popularíssimo entre gregos e romanos. A documentação clássica evidencia a sua larga projeção no mundo clássico.
Em Homero e Virgílio colhemos comprovantes. Lá está logo no princípio de Odisséia:
"Na praia oferenda de touros faziam, negros, sem mácula, ao deus dos cabelos escuros, Poseidon".(Canto III.)
E na Eneida:
"À sorte eleito o antiste Lacoon com sacra pompa à Netuno imolava um touro ingente."
(Canto II.)
"E um touro nédio imolo na praia ao deus supremo."
(CantoIII.)
O sacrifício de touros constituía uma das mais expressivas provas do culto e a sua maior manifestação, neste sentido, era, entre os gregos, chamada hecatombe, sacrifício de cem bois.
O sacrifício obedecia a um ritual. Os sacerdotes atiravam sobre o animal a ser sacrificado, então chamado vítima (daí a origem do nome vítima) ou hóstia, uma mistura de farinha e sal, que se nomeava mola (daí o verbo imolar).
O sacerdote bebia vinho e derramava-o sobre os cornos da vítima; eram as libações. então acendia-se fogo e os servidores seminus (popes) traziam o animal, e um outro (cultrarius) o feria com um machado.
E faziam o holocausto queimando toda a vítima.
Em Roma, o chamado Júpiter Dolichenus era representado sobre um touro, conforme se atesta numa tábua de bronze existente no Museu de Wiesbaden. Hans Lamer, analisando este documento arqueológico, diz que o culto do touro é antiquíssimo e já era observado na civilização cretense.
Desse culto cretense é que veio o sacrifício de touros, costume que se tornou popularíssimo entre gregos e romanos. Os povos romanizados o praticaram. Na península Ibérica foi conhecido.
O cristianismo aboliu o rito do sacrifício, mas conserva o culto do boi. Na procissão de Corpus Christi, no passado, em Portugal, observava-se a sobrevivência do vetusto culto.
Assim diz um documento registrado por Teófilo Braga no livro "O Povo Português":
"Desfilam depois algumas corporações e após um boi, a que chamam boi bento, com as pontas douradas e o corpo coberto com um manto de damasco guarnecido de ouro."
O sacrifício desapareceu. A veneração do boi e de sua caveira persistiu. Em alguns países da Europa, antes de se plantar a terra, sobrevive o costume de fucundá-las como sacrifício de algum animal.
Graça Aranha, no romance Canaan, ao pintar colonos estrangeiros, no interior do Espírito Santo, reproduz essa curiosa cerimônia Européia.
A verdade é que a nossa usança não tem apenas raízes no velho mundo, lá na remota civilização egeana. Nosso meio agrícola, bem cedo, recebeu o negro como elemento servil. Nos canaviais e nos cafezais, o escravo de procedência banto também concorreu para sedimentar o costume rural de fincar caveira de bichos em troncos.
Os negros de Lunda praticam esse curioso costume. Assim menciona o etnólogo português, Major Henrique Augusto Dias de Carvalho, no valioso livro Etnologia e História Tradicional dos povos de Lunda (Lisboa, Imprensa Nacional, 1890):
"Um chifre grande, espetado num tronco de uma grande árvore, tendo em volta o terreno limpo e pisado, uma trepadeira a enlear essa árvore, e uma cabeça e panela suspensas de um tronco, constitui isso também um monumento dedicado a um outro ídolo denominado Muata Calombo.".
Todos respeitam muito esses monumentos e por isso se conservam anos nas mesmas condições, sendo muitas vezes reparados e aumentados por outros caçadores. Servem eles de indicação aos caçadores peritos, pois, pela sua construção, disposição, orientação e ainda por outros sinais, dão a conhecer o cognome de caça de quem o fez, o lugar onde encontrou caça, sua qualidade, enfim, se viu muito ou pouca, se há água ou não perto, etc.
Fonte da foto: Google buscas.
O Explorador lusitano refere-se ainda ao munhanhe, tronco assim chamado, onde os caçadores depositam as caveiras, chifres e ossadas de suas atividades cinegéticas. O fincamento do munhanhe também obedece à uma linha de rituais.
Finalizando, a convicção mística do nosso lavrador quando pendura uma caveira de boi num tronco ou numa estaca para afastar os malefícios dos canaviais, dos cafezais, dos milharais, etc., por certo, pouco difere da crença que há milênios inspirava cretenses a cultuarem o touro ou ainda hoje leva os negros de Lunda a reverenciar o Muata Calombo nas selvas da África.
Fonte: Ribeiro, Joaquim. Os Brasileiros, Ed. Pallas,Rio de Janeiro, 1977.
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