domingo, 13 de abril de 2008

ATAFONA: UM CENÁRIO DE LEMBRANÇAS

Prédio caído - final de tudo...
Débora Batista jornalista.
O Diário - 13/04/08.
Há aproximadamente cinco anos, a família Goulart se reuniu pela última vez na casa de praia onde várias gerações curtiram dias de verão. A residência construída há 60 anos em Atafona, São João da Barra, estava sendo tomada pelo mar. Os irmãos, ao lado de seus cônjuges, filhos e alguns netos, tentavam impedir as lágrimas com músicas e sorrisos, enquanto tomavam uma cerveja em torno de um churrasco de despedida. Nas paredes que em breve não estariam mais erguidas, deixaram frases que tinham um quê de poesia: “as águas não vão levar os bons momentos que passamos aqui”. Na última semana, mais uma cena marcou com tristeza os que moram e os que um dia veranearam em Atafona: a queda do Prédio de Julinho, um marco na resistência ao fenômeno da erosão marítima. Quem nunca foi fotografado ao lado do Prédio de Julinho? O retrato que faz parte de tantos álbuns agora é história. O prédio que nunca chegou a ser concluído passou a ser escombro. Sua queda marca um novo momento: as ruínas hoje representam um sério perigo para quem se aproxima das águas. A praia foi cercada com tablados de madeira e cercas pela Defesa Civil, da prefeitura, obedecendo a determinação do Ministério Público. A visão do que restou do prédio agora é privilégio da moradora Soninha Ferreira. Vizinha da famosa construção, ela consegue ver de sua sacada tudo aquilo que atraiu tantos estudiosos, curiosos, veranistas e até mesmo equipes de reportagem ao local. “O cenário é lindo, mesmo que devassador”, garantiu.
À medida em que construções dos vizinhos iam sendo levadas e as águas se aproximavam, Diva Goulart deixou de freqüentar Atafona. Foi-se embora a residência de Jorge Prazeres, Santiago Carvalhido, Nilson Azevedo, Reinaldo Antunes. “Mamãe não tinha coragem de ver o mar levando nossa casa. Ela não voltou para vê-la tombada. Nós mesmos evitávamos que ela fosse a Atafona”, contou a filha Lia Jeane Goulart Marins, hoje proprietária de uma pousada na praia. Lia se recorda quando a destruição começou. “As águas começaram a invadir por baixo. O chão ficou úmido. Decidimos levar dali os móveis. Depois tiramos as janelas e as portas. Tudo está guardado. São nossas recordações. Um dia, o muro caiu. O mar então começou a levar a parte da frente. De repente veio uma onda e levou o que restava. Durante muito tempo, ficou apenas o arco amarelo do portão. Hoje não sei se ele ainda está lá”, recordou. Era um domingo quando a família decidiu ir até o imóvel para despedir-se dele. “Foi um momento de tristeza, porque veraneamos lá desde quando éramos crianças. Eu tinha oito anos no meu primeiro verão. Quando eu e meus irmãos éramos jovens e solteiros, estávamos lá nos meses de janeiro e fevereiro. Casamos e continuamos a freqüentar a casa. Depois levamos nossos filhos, antes de cada um construir o seu canto. Era uma época mais romântica, de muitas serenatas, com um verão mais tranqüilo. Mas havia festa todas as noites, em algum lugar. Eram tempos felizes”, contou.
Projeto Atafona
Desde 2004, uma equipe da Universidade Federal Fluminense (UFF) e Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) desenvolvem o Projeto Atafona, que consiste em avaliar o processo de erosão marítima, analisar os impactos no presente, passado e futuro e promover o mapeamento cartográfico aplicado ao monitoramento de erosão costeira, fazendo ainda o mapeamento histórico-geológico de processos costeiros holocênicos na planície do rio. Os professores Alberto Garcia de Figueiredo Júnior e Gilberto Pessanha Ribeiro, dos departamentos de Geologia e Engenharia Cartográfica estudam o fenômeno. O trabalho consiste em disseminar informações sobre a erosão marítima junto à comunidade científica e comunidade local (pescadores, artesãos, professores de escolas públicas, técnicos da prefeitura, turistas, moradores de Atafona e veranistas), através de exposições, fóruns e debates. O processo de erosão começou há aproximadamente quatro décadas, com o avanço contínuo do mar. Desde então, cerca de quatro quarteirões com casas, posto de gasolina e igreja já estão submersos.
Soninha estava em casa, quando começou a ouvir os primeiros estalos. Correu para a janela e acompanhou toda a queda do prédio de Julinho. “O barulho não foi tão grande. O que chamou atenção foi a poeira. A cena foi indescritível e triste. O prédio começou a estalar e caíam pedaços de reboco. Depois, caiu em cima de si mesmo. Parecia que estava sendo implodido, não por uma empresa, mas pela própria natureza. Logo levantou-se uma nuvem de poeira. Muita gente se aproximou para ver, mas a praia já estava isolada”, contou a vizinha. A melancolia era profunda diante do acontecimento histórico. “Passei minha vida acompanhando aquele prédio, que faz parte da história de muitas pessoas. Apesar de não ter sido finalizado, o prédio teve movimento. No térreo funcionaram padaria, supermercado, loja de material de construção e, ainda, muitos apartamentos chegaram a ser ocupados por pessoas que moraram no local”, informou. Sônia está consciente de que um dia sua casa também será levada. “Eu acredito e espero que este dia ainda demore a chegar. Mas sei que o prédio do Julinho era uma barreira para a minha casa, que deixou de existir. Embora muitas pessoas me aconselhem a sair daqui, não vou deixar este endereço agora. Também não quero confrontar o mar. No dia em que as águas derrubarem meu muro, vou me mudar. Só peço a Deus que me dê mais um tempo”, planejou. Sônia construiu a casa há 28 anos, quando seus filhos ainda eram pequenos. Há 12 anos, realizou o sonho de morar em Atafona. “Amo este lugar. Sempre estive aqui, não apenas nos verões como nos feriados, mesmo quando morava no Rio de Janeiro. Tenho saudade de lugares que não existem mais. Por mais que estes locais estejam na memória e no coração, é triste não tê-los fisicamente, porque quando olhamos para um espaço, nos lembramos das pessoas que estiveram ali. É como o prédio de Julinho. É triste, mas a vida tem que continuar”.
À espera das ondas
Histórias de quem perdeu suas casas não faltam em Atafona. Na última semana, o mar levou a residência de Zedna e Afonso Pinto. Muitos pescadores já se acostumaram a perder casas. Eles vivem à espera das ondas, no litoral. Os moradores do Pontal, no entanto, não temem o fenômeno e garantem que não saem de perto do mar. Eles afirmam que o homem sofre pelas próprias ações. O pescador e comerciante Almir Bernardinho, popularmente conhecido como Almir Largado, mora entre o rio e o mar há 26 anos. Ele se divide entre as pescarias durante a semana e, nos fins de semana, toca um bar. Largado perdeu a casa que vivia com os pais e irmãs, há 18 anos. “Pescador é teimoso. A gente só deixa a casa na última hora, quando não tem mais jeito. Não tínhamos para onde ir então a única saída era continuar ali. Até que havia tanta areia que foi impossível continuar. O mar já levou mais de 500 casas. É difícil recomeçar. Mas Deus dá forças”, recordou. Para o pescador, há como reverter o processo de erosão, porém, o que deveria ser feito não está acontecendo. “O Governo Federal deveria reflorestar a mata costeira para o rio Paraíba do Sul recuperar sua força, desde São Paulo”, opinou. Largado assume sua culpa, no processo. “Eu mesmo já joguei lixo no rio. Antigamente, fazíamos assim. Aprendemos tarde. Hoje nos ajuda contar com o caminhão de lixo. Temos agora que passar o que aprendemos para as crianças. Elas é que terão que se comprometer com o que ainda está por acontecer”, concluiu.