sábado, 27 de março de 2010

IMPÉRIO DAS RUÍNAS - UM CONTO DE FINAIS DE SEMANA...

IMPÉRIO DAS RUÍNAS *Por Andre Pinto João vivia procurando o que fazer nas areias grossas e escaldantes do Pontal de Atafona. Caminhava rotineiramente às 7 da manhã, indo desde a caixa d`água até o extinto Bar do Evis Presley, sempre buscando inventar "moda". Gostava de uma salsinha da praia - posta bem tonelada - num copo de geleia colombo e aproveitava para espremer um daqueles cajus nativos que os muxuangos traziam do sertão à preços barateiros ou trocava alguma mercadoria achada nas areias da praia por uma fruta dessas, pra lá de suculenta. Tinha que tomar uma diariamente, não tinha jeito. João era um aproveitador da vida, desempregado, não tinha esposa e filhos, sem conta bancária e nem aluguel para pagar, morava num dos muitos quiosques abandonados da praia sanjoanense como se fosse um milionário, proprietário de uma das famosas Ilhas de Angra dos Reis. O sujeito não tinha documentos, não. Era munido apenas por uma certidão de nascimento bastante amarelada e com um certo cheirinho de aguardente - extraída de um cartório de São João da Barra onde o tabelião havia perdido o livro de registros, num bar, o tal livro n.º 21. João era nascido de um ventre de produção independente, chamada "Normândia", moradora lá da Ilha dos olhos azuis, ou a conhecida "Ilha da Convivência" e desde os 12 anos passou a sobreviver sozinho, com o abandono feito por sua mãe, que foi ganhar a vida em modo fácil, para as bandas de Macaé, sob a carona de um barqueiro vindo de Pernambuco. Já adulto, João comia os melhores frutos-do-mar, que geralmente sobravam das embarcações que chegavam do "maragado" ou vinham nos conveses das embarcações dilaceradas por ataques de outras espécies e ou pisoteadas pelos próprios pescadores. Também ganhava peixes que não tinam valor comercial e fazia a festa em sua cabana. Das delícias do mar, João saboreava pedaços de lagostas, pampos, robalos, badejos, sardas, prejerebas, namorado, lulas e camarões, enfim, acabava possuíndo uma condição ímpar de saúde através da nutrição vinda do fundo do oceano atlântico, mas, por outro lado, a pinga maldita o maltratava, assim como o saboroso "rabo-de-galo" que gostava de tomar nos torneios de rinha de galo que acontecia ilegalmente, ou com a permissão e "vista grossa" das "autoridades" sanjoanenses, pelos quatro cantos da terrinha de São João Batista. A choupana de praia de João "Cara de Peixe", apelido dado carinhosamente pelos autóctones do Pontal, era algo excepcional de se ver e quiçá visitar. Mas não entrava qualquer um, não! Apesar de rústica, feita com restos de madeiras vindas das enchentes do Rio Paraíba do Sul, tinha um certo estilo "arquitetônico" de um tal impressionismo funcional - assustava de início, mas funcionava! A choupana do "Cara-de-peixe" era simples de se descrever: tinha cobertura de palha, em dois lances, de coqueiro tirados da Ilha da Convivência, possuía umas claraboias feitas com restos de vidros de cores variadas jogados no lixão da cidade, havia um mesanino com escada toda feita com os calões secos retirados dos manguezais das redondezas. A parte superior era toda enfeitada com rodelas de aninga - uma vegetação pré-histórica encontrada nos rios e que dava abrigo aos jacarés de papo amarelo - que eram penduradas em cipós retirados de umas árvores nativas dos sertões sanjoanenses. O banheiro de João "cara-de-peixe" era, na verdade, uma casaria de uma bateira velha, abandonada por um dos vários estaleiros ainda em operação nos dias atuais na região de Atafona e que são resquícios da tradição de um período aureo da nossa navegação fluvial. A entrada da choupana era cinematográfica. Tinha um velho tapete com pele de boi bem alocado no centro da salinha, conseguido junto à amigos do matadouro municipal, num daqueles serviços extras que João apanhava com unhas e dentes. Passando-se por uma estreita passarela na areia da praia, feita de restos de tijolos maciços "catados" nas marés de lua em Atafona, que foram jogados novamente para terra com a fúria do mar, chegava-se à varanda da dita choupana. Como enfeite de varanda, João "Cara-de-peixe" deu uma de marceneiro curioso e colocou, em cruzamento, dois troncos retorcidos de nozeira que acabavam servido de para-peito para a vista do mar que se estendia ao longe e deu-se a plantar capororocas, cactáceas, bromeliáceas, fazendo do local a sua mais nobre moradia. Não faltavam também, na varanda, restos de redes de pesca pendurados no teto com boias velhas de isopor ou de borrachas (sobras de sandálias havaianas), que davam um toque ainda mais bucólico no conjunto arquitetônico de João. As conchinhas também davam o seu brilho e som quando penduradas e atingidas frontamente pelo forte vento nordeste, abundante em Atafona. No leito sagrado de "Cara-de-peixe" tinha uma cama feita com as tabúas arrancadas e secas à sombra, da Lagoa de Iquipari. A amarração das mesmas era feita com um tipo de cipó que só era encontrado na mata do Caroara - local de muitas cobras venenosas como a própria jararaca-pico-de-jaca ou em pontos onde eram encontrados enormes formigueiros com as robustas formigas cortadeiras chamadas de formigas "Taí". A Água que "Cara-de-peixe" usava era proveniente de uma das tubulações (encanamento) que havia sido destruída pelo avanço do mar em tempos remotos e que a própria companhia de abastecimento de águas nunca foi verificar se estava havendo desperdício.Usava-se a água tão somente para lavar a prataria velha, copos e talheres do João ou para jogar água no vaso sanitário do "Presidente" - nome do vaso sanitário que "Cara-de-peixe" jurava ter conseguido em um brechó de materiais de construção e que era da vivenda demolida em Chapéu do Sol que havia pertencido ao Presidente Nilo Peçanha. O cabra gostava de colecionar ossadas de peixes, cascos de tartarugas que apareciam mortas na Convivência, couro de jacarés-do-papo-amarelo e catava, como culto ao exercício físico, as milhares de conchinhas espalhadas nas areias bicolores (quartzo e monazítica) da praia, que ele fazia colares e pulseiras para uso próprio somente. Não gostava de vender seus apetrechos, mas sim trocá-los ao bom estilo dos índios goytacazes, em tempos remotos. Alguns achavam que João "Cara-de-peixe" era um "hyppie", mas ela não fazia esse tipo. Outros achavam que João "Cara-de-peixe" sabia muita coisa e que fingia ser o que era só para levar uma imagem de "coitadinho" aos outros. De qualquer forma, "Cara-de-peixe" era um sobrevivente do Pontal de Atafona, local onde o poderoso "Nemo" fazia a sua festa com as brincadeiras de tomar as casas dos pescadores com as marolas provenientes de seu reino das profundezas marinhas! O Jorginho, dono do bar Elvis Presley, achava João "Cara-de-peixe" muito misterioso, assim como alguns moradores da famosa "sapolândia", um bairro de pescadores junto à foz. Afirmavam que João tinha algo escondido, enterrado nas areias das dunas e que ele ficava vigiando as marés de ressaca para mudar de local alguma coisa que guardava à sete chaves por debaixo das corcovas quartizosas da praia. Nunca se viu o que João enterrava e escondia naquelas areias dinâmicas de Atafona. João era um sujeito que de frente quase não se via e de lado chegava a cortar o vento nordeste com sua magreza. Não era do tipo raquítico, mas podia se esconder com facilidade por detrás de um daqueles velhos e corroídos postes das vielas de Atafona, sem ser percebido. O sujeito tinha olhos claros, lábios finos, nariz pontiagudo, queixo com furinho no meio (o pessoal de S. J. da Barra fala que é "queixo C... de cachorro) e barba ralada. Ainda tinha uma cicatriz marcante abaixo do queixo por causa de uma queda que teve quando criança ao descer de um "batelão" - uma embarcação típica de foz que era feita do tronco único de uma árvore chamada guanandi, muito abundante em São João da Barra em outros tempos. Levava no antebraço esquerdo uma tatuagem muito mal feita, que tratou de fazer quando era adolescente, usando estupidamente um anzol enferrujado e embebido no óleo quente da castanha de caju retirada da localidade dos cajueiros e Degredo. O desenho era uma estrela do mar e uma âncora por trás. Domingo 28/03... (continuação) Assim nós podíamos descrever o João "Cara-de-peixe". Um largado, no sentido profundo da palavra. Mas Cara-de-peixe não dava mole pra ninguém. Assumia o risco de sua empreitada e andava de nariz em pé sem dar confiança aos outros. Os turistas, assim que deparavam com Cara-de-peixe à frente de sua choupana, sentiam uma espécie de curiosidade em indagar como o cabra conseguia sobreviver num local tão hostil que uma vez ou outra era "engolido" pelo mar. João respondia: - lugar melhor não há, pois aqui ninguém me cobra IPTU e nem luz e água eu pago. SURGE O CALIXTO O nascer do sol visto da varandinha do Cara-de-peixe era uma das alvoradas mais belas que um ser humano podia presenciar. A natureza parecia sorrir para Cara-de-peixe. Podiam-se ver os botos às 5 da manhã pulando no mar de Atafona, as gaivotas de capuz cinza fazendo vôos razantes nas dunas, os trinta-réis saindo dos manguezais com pequenos crustáceos nos bicos, as garças despertando nos galhos suspensos das siribeiras, os espera-marés desenhando riscos nas areias e fazendo a limpeza da praia, enfim , muitos detalhes podiam ser vistos só daquela varandina do Cara-de-peixe. E por falar em bichos, João Cara-de-peixe havia adotado um cãozinho que resolveu dar o nome de "Calixto". Nem João sabe onde arrumou este nome esquisito, mas ouviu alguém falar dele uma vez e o gravou na memória. Calixto era arisco, fiel, comia o que Cara-de-peixe comia, sem cerimônia. Era um cãozinho magro como o dono, porém muito bem tratado pelos sucessivos banhos que tomava no delta e na praia medicinal do Pontal de Atafona, cheia de iodo em suas águas, possuindo um pêlo de dar inveja à cachorro de madame. Foto: O personagem "Calixto" foi inspirado num cão que morou em Atafona ,tendo como seu dono o amigo Lulu da Secretaria Municipal de Meio Ambiente. NEM SEMPRE O SOL BRILHAVA PARA CARA-DE-PEIXE E CALIXTO A natureza do Pontal de Atafona era perfeita. Com abundância de vento nordeste, sol à pino, ondas em sincronismo, o encontro calmo do rio com o mar, na foz do Rio Paraíba do Sul, enfim, o vida no local dava o testemunho das grandes obras feitas pelo grande arquiteto do universo. Nesta explosão de vida e cores, também a natureza se manifestava de forma adversa no Pontal de Atafona, alterando inteligentemente o seu estado de "humor" e trazendo grandes tormentas, ventanias e ressacas do mar. Assim acontecia nos meses de março e setembro. João Cara-de-peixe quase não tinha tempo de sair de sua "choupana" para procurar abrigo em outra área. Só dava tempo de pegar umas peças de roupa, sua certidão de nascimento e assobiar para o Calixto e caíam em debandada. As embarcações que pescavam em alto mar iam todas para o canal da CEHAB, uma espécie de porto seguro da vila de pescadores. O céu Atafonense, de azul ficava cinza escuro, as ondas do mar pareciam que tomavam fermento e cresciam assustadoramente e invadiam as ruínas do litoral e nem a "choupana" às vezes escapava do mar revolto. O vento sudoeste chegava forte e para o inferno dos moradores da vila da praia, o mesmo vento trazia uma porção de infermidades, como gripes e viroses. O povo tinha que se submeter aos gastos das farmácias locais. João, não. Raramente pegava gripe ou resfriados. João fazia uma espécie de garrafada que havia aprendido com um barqueiro de nome "Sizé" que veio do sul certa vez e ficou fazendo reparos em sua embarcação na foz até partir novamente. A garrafada do Cara-de-peixe consistia em adição de ervas medicinais como capim-limão, assa-peixe, folhas de pitangueira, ervas-de-passarinho, mel retirado de abelhas que habitavam o manguezal Ilha do Lima e não podia faltar aquela dose dupla de Conhaque de Alcatrão de São João da Barra. Tinha também cravo-da-índia, canela em pau e um pouco de pó de guaraná. Era uma senhora garrafada! Quanto aos danos que as mudanças climáticas faziam em Atafona, João já era um cabra resignado. Tinha reconstruído a sua casa umas dez vezes e nunca fazia a mesma construção. Houve certa vez, que Cara-de-peixe fez uma casinha de um cômodo em cima de um tronco de uma nozeira seca que estava próxima das águas, mas só morou lá por duas semanas, tendo sido obrigado a sair de lá por ordem da Defesa Civil da cidade. João havia feito uma escada pregando pedaços de paus no tronco principal e tinha um alçapão de entrada que ele trancava, amarrando uma corda com nós. (continua no decorrer da semana...)

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