domingo, 31 de agosto de 2008

DESABAFO DA BIODIVERSIDADE É FEITO POR SOFFIATI

EU, UM VERME.
*Aristides Soffiati.
Desde 1977, quando passei a atuar publicamente em defesa do ambiente, sinto que estou me afastando da humanidade. Não da humanidade em geral, mas da humanidade que foi contaminada pela civilização ocidental cristã na sua fase capitalista e que agora atingiu o mundo todo. Naqueles remotos tempos, escrevi o poema “SE”, publicado no livro “Depois do Princípio e Antes do Fim” (1992), que já revelava este abandono: “Se, por um mistério indecifrável e desafiador, nasci/humano, quando poderia ter assumido a forma de uma das/dez milhões de espécies vegetais e animais que estamos implacavelmente exterminando,/por que então orgulhar-me de ser “Homo Sapiens”?// Se a maioria dos seres vivos, por um acaso inexplicável,/ou é fêmea ou é macho, por que orgulhar-me da minha/condição de homem, quando poderia ter nascido mulher?//Se os seres humanos se dividem, independentemente/de sua vontade, em várias etnias, por que orgulhar-me de/ minha pele branca, quando ela poderia ser negra ou amarela?// Se, a despeito das mais sofisticadas explicações científicas,/não se consegue demonstrar a diversidade das culturas/humanas nem a razão pela qual meu ser não habita o corpo/de um esquimó, de um sumério, de um hopi ou de um jaina,/por que então orgulhar-me de ser brasileiro?” Este afastamento não era consciente, a princípio. Agora é. Principalmente depois que li “A Criação: como salvar a vida na Terra”, do biólogo Edward O. Wilson, um dos maiores especialistas mundiais em biodiversidade. Embora ateu, Wilson, já com idade avançada, está empenhado numa cruzada para conseguir o apoio das denominações religiosas do judaísmo, do cristianismo e do islamismo para a proteção da vida no planeta. No meu entender, ele está perdendo tempo. Judaístas, cristãos, muçulmanos, liberais, marxistas, anarquistas, esquerda e direita, não conseguiram, nestes trinta anos de crise ambiental mais aguda, perceber a gravidade dela. Não digo todos, pois sempre há exceção, mas a maioria continua vivendo a sua vidinha individual ou social alheia ao mundo, preocupando-se, no máximo, com as questões econômicas, políticas, sociais e culturais. Apesar da grande massa de informações veiculadas pelos meios de comunicação, as pessoas não acreditam como deviam no aquecimento global, na destruição das florestas, na perda de vitalidade dos oceanos, no empobrecimento da biodiversidade e em tantos outros problemas mais. A grande burguesia globalizada continua, cada vez mais aceleradamente, buscando seus lucros com sofreguidão. Há empresários ou defensores deles que tentam me convencer da possibilidade de um desenvolvimento sustentável, conciliando desenvolvimento clássico com proteção da natureza. Discurso, mero discurso. A pequena burguesia nada faz além de buscar seus interesses mesquinhos e imediatistas. A classe média — e aqui, incluo os intelectuais — está neste mundo a passeio. Os pobres e miseráveis estão sendo empurrados para a margem aceleradamente. No entanto, aprenderam os valores dos dominantes. Buscam sobreviver a duras penas ou a ambicionar os bens das classes acima deles. Nada de projeto novo para um mundo novo. E os políticos, o que pensar dos políticos? É possível acreditar no G-8? É possível acreditar na China? É possível acreditar no Brasil? Lula, Dilma Roussef, José Genoíno, José Dirceu, todos estes que lutaram por um mundo melhor, a seqüência dos prefeitos renovadores que assumiram o governo em Campos após Garotinho, só fizeram minar minha confiança. Bom, pessoal. Estou escrevendo apenas uma carta de adeus. Não adeus ao mundo. Não pretendo me matar. Que ninguém busque meu apoio nestas eleições municipais. Nem direita nem esquerda. Tenho sido vítima desses candidatos oportunistas que só me procuram em ano eleitoral, oferecendo-se como porta-voz da causa ecologista e tentando explorar minha história de coerência. De antemão, declaro que anularei meu voto. Hoje, identifico-me mais com os vermes, com os urubus, com as plantas, com os fungos, com os invertebrados. Não posso ser um verme porque nasci humano. Contudo, a partir de agora, sou um humano ao lado da biodiversidade, defendendo-a de todos vocês. Pelo menos, estarei em boa companhia.
fonte: Publicado no jornal Folha da Manhã - domingo - 31/08/09.
Eu , um híbrido
Mais que um desabafo, “Eu, um verme”, artigo que publiquei na FOLHA DA MANHÃ, no dia 31 de agosto último, foi uma catarse. Várias pessoas me escreveram felicitando-me pelas idéias expostas. Outras compreenderam minha angústia. Outras, ainda, criticaram-me e me pediram otimismo. Uma aconselhou-me o conformismo diante da vontade de Deus e da capacidade de resistência da vida. Particularmente uma, perguntou-me o que fazer. Como se tratou de uma catarse, minha depressão começou a ceder. As idéias foram se assentando. Depois do processo de mudança que se iniciou em mim a partir de abril de 2008, percebo que não há mais reversão completa. Foi assim com duas crises profundas em minha vida. A sucessão delas me transforma cada vez mais num ser híbrido, conforme Bruno Latour concebe hibridismo. Primeiro, eu era um ocidental e me transformei num ocidental-outras culturas. Agora, sou um humano-outros seres vivos e não vivos. Sou professor, pesquisador e militante. Escrevo artigos científicos e artigos jornalísticos. Sei e não sei quem sou. Só sei que sou um homem angustiadamente do meu tempo. Se tivesse três pés, um se assentaria sobre o passado, outro no presente e outro no futuro. Como não tenho, meu espírito percorre os três tempos sem segmentá-los. Sempre que analiso o presente, recorro ao passado e faço prognósticos. Estou lá e cá. Ao mesmo tempo, nem lá nem cá. Ainda seguindo Bruno Latour, reconheço que o mundo não-humano é constituído de sujeitos que se manifestam, que “falam”. Em minha tese de doutorado, ousei colocar os manguezais como sujeitos de história ao lado dos humanos. Receei ser massacrado pelos meus examinadores. Contei com o apoio corajoso de Maria Manuela Ramos de Sousa Silva, minha orientadora. Agora, não temo mais me expor. Teórica e afetivamente, creio mesmo que minerais, bactérias, protozoários, plantas e animais produzem história e interagem conosco. Não são objetos inertes, como tentou demonstrar a filosofia clássica. Nem nesta os seres não-humanos foram silenciados. Eles falaram aos filósofos e cientistas, que não souberam ouvir com mais clareza o seu discurso. Vejam o caso dos invertebrados tardígrados, dos quais pretendo escrever em breve. Eles vêm falando aos cientistas que estão bastante preparados para enfrentar o aquecimento global. Muito melhor do que nós. Mas nossos ouvidos moucos não ouvem sua voz. Nossa arrogância antropocêntrica os despreza. Hoje, circulo nos dois mundos. Ora me fascino com a filosofia, com a ciência, com a literatura, com as artes plásticas e com a música. Ora abandono o mundo humano e viajo para o mundo não-humano. Lá (ou aqui), também encontro as maravilhas produzidas pelas pedras, pelas águas, pelos vegetais e pelos animais. Claude Lévi-Strauss também vê arte nos moluscos e nos insetos. A diferença é que os artistas podem se tornar pretensiosos. Os minerais e os animais, não. Eles nem sabem o que fazem e por isto fazem melhor. Sou meio humano, meio pedra, meio planta, meio bactéria, meio protozoário, meio bicho. Híbrido. Pela mesma trilha de Bruno Latour, estou olhando nossa civilização por um prisma antropológico. Os antropólogos julgaram-se (talvez ainda se julguem) superiores às culturas que estudaram, pois só o ocidente seria capaz de criar a antropologia. Quem nos garante que os outros povos também não nos olharam antropologicamente? Pois bem, examinando a economia de mercado por um ângulo antropológico é que vejo nela, como Wallerstein, quatro pontos de insustentabilidade: o ambiental, o econômico, o social e o político, assunto que fica para outro dia. Sucede, que saio e retorno ao ocidente. Mais um indício de minha hibridez. Por fim, o que fazer, como me pediu a professora de história Martha de Carvalho Schultz? Atualmente, não sei bem. Sempre me perguntam qual a solução para a profunda crise do nosso tempo. A pergunta não tem resposta simples. Quiçá, nem mesmo resposta. Wallerstein sustenta que o capitalismo se esfacela em 50 anos por conta de suas contradições. Não sei. Creio, provisoriamente, que devemos ter uma estratégia mínima e modesta para o futuro e escolher táticas que nos aproximem dela. Da minha parte, não consigo apenas viver aqui e agora. Penso no futuro e assumo minha condição de híbrido para pensar melhor. Como concluí, por minhas leituras, que o mais grave problema da atualidade é o empobrecimento da biodiversidade, tenho me dedicado a estudá-lo. Meus escritos e minhas palestras versam sobre este tema. É uma contribuição modesta, mas é o que posso fazer.
Fonte: Folha da Manhã, 14/09/08. Complexus.