domingo, 24 de agosto de 2008

SOFFIATI CITA A BIODIVERSIDADE FAUNÍSTICA DO NORTE E NOROESTE FLUMINENSE NO JORNAL FOLHA DA MANHÃ DE CAMPOS

A biodiversidade faunística (I)
Aristides Soffiati
É como ecohistoriador que abordo o tema do título em alguns artigos a partir de hoje. Começo pelos invertebrados, valendo-me de uma variada gama de documentos. Pretensiosa a maneira com que operam nossos cientistas: caracterizam como vertebrado um grupo de animais que contam com uma coluna dorsal articulada constituída de segmentos calcificados a amarrar outros elementos ossificados formadores do que se denomina esqueleto interno.
Todos os outros animais que não possuem esta endoestrutura são colocados numa grande ante-sala com o rótulo de invertebrados. Os autores que mais contribuem para o conhecimento deste meta-grupo, no século 19, foram Maximiliano de Wied-Neuwied, Auguste de Saint-Hilaire e Hermann Burmeister, cada um com seus favoritismos, mas todos eles naturalistas que visitaram o território hoje correspondente ao norte-noroeste fluminense.
As pesquisas arqueológicas efetuadas no arquipélago de Santana por Tânia Andrade Lima e Regina Coeli Pinheiro Silva revelam que os inverte-brados integraram a dieta dos povos que a habitaram antes da chegada dos europeus. Dentre eles, os crustáceos estão pouco representados. Foram identificados os cirripédios (cracas) “Tetraclita stalactifera” e “Coronula diadema”, o primeiro preferencialmente grudando-se a substratos rochosos na linha das marés mais altas, ao passo que o segundo aderindo à epiderme de baleias.
Dedos fixos de siris e caranguejos também foram recuperados. Da família dos siris, há restos que podem pertencer aos gêneros “Callinectes”, “Arenaeus” ou “Portunus”. Foi possível identificar a presença do guaimum (“Cardisoma guanhumi”), do caranguejo uçá (“Ucides cordatus”) e de guaiá-açu (“Menippe nodifrons”). As investigações no sítio arqueológico revelaram grande quantidade de carapaças calcárias e espinhos de ouriço do mar, até hoje muito comuns nas pedras da ilha de Santana.
Quanto aos moluscos, sua importância para a alimentação da comunidade humana insular é digna de registro. Há restos de conchas e caramujos marinhos, terrestres e de água doce correspondentes a 33 espécies, a 30 gêneros e a 20 famílias, em sua esmagadora maioria pertencentes aos ambientes da ilha.
De todos os invertebrados, o que mais impressionou os viajantes foi a “Tunga penetrans”, popularmente conhecido como bicho-de-pé. Quase todos os naturalistas estrangeiros sentiram a sua presença na carne. O príncipe Maximiliano, com seu proverbial senso de observação, não se deixou abalar mesmo atacado pelo inoportuno animal. Resignadamente, Saint-Hilaire lamentou que “Desde o começo dessa viagem não havíamos cessado, eu e meus empregados de ser atormentados pelos bichos de pé...” Burmeister também não escapou do ataque do ectoparasita. A tungíase, parasitose causada pela “Tunga penetrans”, era uma endemia de tal forma generalizada no campo e na cidade durante os períodos colonial e imperial que os habitantes do país já haviam se acostumado com ele no seu cotidiano. Eis porque os registros acerca dela geralmente competiam aos estrangeiros, que se assustavam com seu ataque.
Só se soube que o padre Pedro Marques Durão, de São João da Barra, fora acometido pelo mal porque o denunciaram por celebrar missa de chinelo.
A biodiversidade faunística (II)
O capitão Manoel Martins do Couto Reis, no século 18, registrou os gafanhotos, as borboletas, as mutucas, insetos de inúmeras formas, pinturas e pequenez que “surpreendem a nossa admiração”. Enumerava ainda as abelhas nativas jataí, guarupu, mandaçaia, mumbuca, irata, e vorá.
Maxi-miliano de Wied-Neuwied registrou o vagalume e, numa densa floresta à margem do rio Paraíba do Sul entre Campos e São Fidélis, maravilharam-no a multidão de insetos luminosos e o canto de grandes cigarras ouvido a extraordinárias distâncias.
Auguste de Saint-Hilaire foi atormentado por mosquitos e percevejos. No entanto, quem mais se dedicou a descrever invertebrados foi Hermann Burmeister, que caçava borboletas nas matas do Rio Pomba. Menciona escaravelhos e cigarras. É com vagar que fala de borboletas como “Morpho menelaus” (“M. Nestor”), “Morpho adonis”, já considerada rara na época, “Peridromia amphinome” e a completamente nova “Peridromia arethusa”; “Heliconius phyl-lis” e “H. sara”, borboletas que vivem unicamente na mata virgem e escura; já a “H. Thales”, nota o autor, gosta de lugares abertos; o naturalista fica surpreso de encontrar como testemunho inequívoco da região tropical americana a “Vanessa huntera”, parente próxima da européia “V. cardui”; o gênero “Heliconius”, aos olhos do zoólogo, parece ser o mais comum, bastante freqüente no Rio de Janeiro e perto da Lagoa Santa. Foi subindo o Rio Pomba que ele viu pela primeira vez, na sua excursão, ninhos de térmitas, dedicando-lhes uma página inteira. Afirma categórico que todo negro e muitos mulatos têm piolho. Esclarece que nos brancos também não é muito raro encontrá-los. Outro grupo de invertebrados que atormentava a vida do estrangeiro era o dos mosquitos, se bem que Burmeister assegurasse que estes insetos picadores não eram mais freqüentes no Brasil que na Europa, incorrendo em erro quem pensasse que os insetos causam mais incômodos e moléstias nas zonas tropicais que nas temperadas. Aponta como mais comuns espécies dos gêneros “Culex”, “Anopheles” e “Simulium”. Quanto às moscas, identificou uma do gênero “Stomoxys” como a mais conhecida, embora não soubesse distingui-la com exatidão da “Stomoxys calcitrans” européia. Anotou ainda os gêneros “Chrysops” e “Tabanus”, mais encontradas nas matas, atacando de preferência os animais que o ser humano. Seu cavalo foi assustado pela grande “Pangonia lingens Wied”. Burmeister, todavia, concordava com a população local que a mosca mais danosa era a transmissora do berne, pertencente ao gênero “Tripoderma” (“Cuterebra”), até aquela época, ao que parece, não descrita. Artrópodes, mas não insetos, os carrapatos merecem considerável atenção dele, pois trata-se de “outra praga da qual nenhum viajante consegue livrar-se.” Embora existam carrapatos na Europa, o naturalista alemão esclarece que, lá, eles não se encontram em tão grande quantidade como no Brasil, onde “desaparecem na estação úmida e voltam no outono, quando termina a época das chuvas.” Atacando seres humanos e animais, o carrapato provoca grandes incômodos.
Antes de chegar à Aldeia da Pedra (Itaocara), o naturalista alemão observou abelhas nativas, como a “Trigona amalthea”. “Todas as abelhas selvagens produtoras de mel são, quanto eu saiba, de origem americana e ‘Trigonas’, cujas várias espécies os brasileiros conhecem, dando-lhes diferentes nomes.” Ainda entre os invertebrados, Burmeister se impressionou com uma enorme minhoca que encontrou quando seguia para a aldeia de Santa Rita da Meia Pataca. Na sua descrição, contava ela com a grossura de um dedo e mais de um pé de comprimento. Ele deparou ainda com outras mais, porém não pôde trazer nenhuma, pois que se deterioravam no álcool fraco de que dispunha. Talvez tenha ele sido apresentado ao minho-cuçu (“Rhinodrilus alatus”? “Rhinodrilus fafner”?), verme capaz de cavar galerias em concreto armado e que é dado por extinto. Dando um salto no tempo, menciono os levantamentos de Norma Crud, que chama a atenção para as ameaças sofridas pelos moluscos “Cochlorina navicula”, “Auris bilabiata melanostoma”, “Strep- taxis contusus”, “Megalobulimus ovatus”, “Solaropsis sp”., “Parides ascanius” e o gongolo “Rhinocricus padbergi”. Os levantamentos atuais de invertebrados nas regiões norte e noroeste do Estado do Rio de Janeiro são pífios. Eis por que pleiteio, junto aos órgãos governamentais licenciadores de grandes empreendimentos, que eles desenvolvam programas de varredura de biodiversidade, ao menos de organismos pluricelulares.
A biodiversidade faunística - peixes (III)
A o longo da história dos peixes, formaram-se quatro classes: os peixes sem mandíbula (agnatos), os peixes com carapaça (placodermos), os peixes cartilaginosos (condrictes) e os peixes ósseos (osteíctes) A classe dos placodermos foi extinta pela própria natureza, antes da constituição dos hominídeos. Investigações arqueológicas efetuadas no norte-noroeste fluminense revelam que a ictiofauna consistiu numa fonte privilegiada de alimentos para os povos indígenas. A empreendida na ilha maior do arquipélago de Santana, em frente à foz do rio Macaé, acusou a existência, dentre outras espécies, do cação-martelo (Sphyrna sp), das raias, das quais foi identificada a espécie raia-chita ou raia-pintada (Aetobatus narinari) e encontradas peças cartilaginosas pertencentes ao gênero Myliobatis ou Rhinoptera. Os habitantes indígenas da ilha recorriam principalmente aos abundantes bagres, destacando-se o bagre-bandeira (Bagre bagre) e o voador (Dactylo-pterus voltans). Talvez, por este motivo, o Rio Macaé tenha sido denominado pelos primeiros europeus de Rio dos Bagres. Foram encontrados também restos dos gêneros Epinephelus, possivelmente pertencentes a garoupas, meros e chernes, e do Mycteroperca, quiçá associado a badejos. No material desenterrado, havia ossos de enchova (Pomatomus saltatrix), de xaréu (Carans sp), do gênero Selene (peixe-galo), de coco-roca (Haemulon sp), de sargo-de-dente (Archosargus probatocephalus), de marimbá (Diplodus argenteus), de corvi-na (Micropogonias furnieri), de pirangica (Kipho-sus secta-trix), de enxada (Chaetodipterus faber), de budiões (gêneros Scarus e Sparisoma), de cangulo (Balistes vetula) e do gênero Mugil (tainha). No entanto, o prato predileto dos primitivos habitantes da ilha eram os baiacus, dos quais foram reconhecidos restos do baiacu-arara, (Lagocephalus laevigatus) e do baiacu-de-espinho (Diodon hystrix). Peixes extremamente venenosos por sintetizarem uma toxina só encontrada nos tetradontídeos e na família Salamandridae, da classe dos anfíbios, se ingeridos sem os devidos cuidados na sua preparação, podem causar a morte em 30 minutos. Ao desembarcarem pela primeira vez nas terras que conseguiram como sesmarias (1632), os sete capitães ficaram “pasmos de ver semelhantes grandezas de peixes em terra.” Na segunda viagem (1633), voltam a se surpreender com a abundância de peixes de água doce que os nativos lhes ofereciam com hospitalidade. Numa determinada lagoa, conta o Roteiro, os indígenas dispuseram-se a pescar usando redes que teciam com uma planta seca ao sol e torcidas nas pernas ou nas palmas das mãos. Tudo indica tratar-se da tabua (Typha domingensis). Duas horas depois, vieram carregados de peixes de várias espécies, predominando a piabanha, que acabou se transformando no nome de batismo da lagoa. O primeiro documento a nos fornecer uma relação relativamente pormenorizada sobre a ictiofauna da região é a Descrição de Couto Reis (1785). “Encontram-se – anota ele – peixes de várias qualidades tanto do mar como de água doce, e alguns de um sabor admirável.” Entre os peixes do mar, o capitão aponta o robalo (o de melhor sabor, sobretudo o do Furado e da Lagoa Feia), o bagre, a tainha, a cruvina (corvina) e a carapeva (carapeba). Entre os de água doce, inclui a piabanha, o piau, excelentes, o coromatan (crumatã, curumatã ou corimbatá), taraíra (traíra), jundiá, duiá, taiabucu, alambariz (lambari), todos com muita espinha e semelhantes ao bagre. Nas quedas d’água, vivem surubins de duas espécies. Fala ainda da piracanjuba e do dourado. Estranha-se a existência deste último no século 18, nos ecossistemas de água doce da região, pois que, nativo de outras bacias, só foi introduzido na bacia do Paraíba do Sul nos séculos 19 e 20, em duas tentativas frustradas e numa bem sucedida. Das duas uma: ou o dourado foi introduzido em época anterior ao que normalmente se julga ou nomeava-se alguma espécie nativa com este nome. Como, porém, todas as espécies relacionadas por Couto Reis continuam sendo encontradas ainda hoje, embora em escala bem mais reduzida, é de se supor que o dourado tenha sido trans-locado para o norte-noroeste fluminense em período anterior ao comumente admitido. Nenhum dos naturalistas que percorreu o norte-noroeste fluminense, no século 19, dedicava-se mais particularmente ao estudo da ictiofauna. Eis porque, talvez, não encontremos nenhuma menção a peixes, quanto à referida região, em Maximiliano de Wied-Neuwied, Saint-Hilaire, Burmeister e Tschudi. Os memorialistas brasileiros é que se referem aos peixes de modo bastante informal. Nos escritos de Aires de Casal (1817), José Carneiro da Silva (1819), Pizarro e Araujo (1822), Muniz de Souza (1834) e Teixeira de Mello (1886), fala-se em robalo, tainha, piaba-nha, piau, crumatã, surubins corvina, acará, traíra, bagres, jundiá, cachimbau, piaba, manjuba, ticopá, duiá, moro-bá, urutum, sairu e muçum. Os ecossistemas mais pródigos em peixes, além do mar, eram as Lagoas Feia (sempre em primeiro lugar) e a de Cima, o Rio Paraíba do Sul e vários brejos, na verdade, o incontável número de lagoas. No seu primeiro trabalho mais longo (1934), Lamego exalta o robalo da Lagoa Feia, a traíra da Lagoa do Campelo, a corvina da Lagoa de Cima e o piau do Rio Paraíba do Sul.
Fonte: Jornal Folha da Manhã - Complexus.
A biodiversidade faunística (IV)
Poucas referências há sobre anfíbios e répteis no norte-noroeste fluminense. Sob a rubrica geral de insetos, Manoel Martins do Couto Reis incluiu sapos variados, conferindo relevância às intanhas, segundo ele, de grandes dimensões e de inexplicável veneno, capazes de engolir pequenos frangos, pelo que ouviu dizer. Ao atravessar densa floresta, quando fez o percurso de Campos a São Fidélis, Maximiliano de Wied-Neuwied impressionou-se com “a estranha toada de um exército de rãs [que] ressoava nas trevas noturnas da brenha solitária.” Os répteis encontram-se mais presentes, tanto na alimentação dos povos nativos e exóticos quanto nos registros humanos. Sobre a ordem reptiliana dos “Squamata”, ossos recuperados na ilha maior do arquipélago de Santana por pesquisa arqueológica revelam que seus habitantes pré-cabralinos usaram o lagarto teiú (“Tupinambis teguixin”) como alimento, ao que parece bastante encontrado na ilha, a julgar pelo número de fêmures desenterrados (59 ao todo). Até hoje, o maior dos lagartos brasileiros é considerado um pitéu entre os habitantes rurais, principalmente pela cauda carnuda. Dentre as muitíssimas espécies de lagartos apontados por Couto Reis, deveria ele estar incluso. Encaminhando-se para o Espírito Santo, Maximiliano encontrou caçadores escuros e totalmente nus, que o príncipe confundiu com indígenas, carregando dois exemplares mortos deste réptil. É ainda o nobre naturalista alemão que encontra, na região, a lagartixa de coleira preta (“Tropidurus torquatus torquatus”), no comentário de Olivério Pinto, “...mais um exemplo das inúmeras descobertas zoológicas de Wied, que dele nos dá uma bela estampa em suas Abbildungen.” Subindo o rio Muriaé, Antonio Muniz de Souza registrou, entre a abundante “caça”, muitos lagartos. Hermann Burmeister topou, na sua excursão científica ao noroeste fluminense, com um sáurio popularmente conhecido por taraguira, calango ou lagartinho, ao que tudo indica a mesma espécie identificada por Wied, e com um lagarto ápode (“Pygopus striatus”). Em sua obra mais conhecida, Teixeira de Mello faz também menção ao lagarto. Da ordem “Squamata”, as cobras chamaram a atenção de todos por sua fama de peçonhentas e mesmo pelo significado simbólico que tem a serpente no imaginário judaico-cristão. Couto Reis enumera, ainda sob a designação de insetos, a jibóia, a morubá, a cobra d’água, a cipó, a cobra de bosta e a caninana, mansas e menos venenosas; a surucucu, a jararaca e a coral, muito ferozes e peçonhentas. Uma cobra cipó verde (“Chironius carinatus”) cruzou velozmente o caminho de Maximiliano. Encontrou ainda um único exemplar de muçurana em toda sua viagem, também conhecida por cobra preta, boiru ou limpa mato, denominada por ele de “Colomber plumbeus”, hoje “Pseudoboa cloelia”. Na sua excursão no rio Muriaé, Muniz de Souza informou sobre a existência de muitas cobras. Além da jibóia, da surucucu e da coral, José Carneiro da Silva acrescenta a jararacuçu, a uruçanga e a dorminhoca. No que concerne à ordem dos quelônios, tão bem representada na ecorregião, há uma lacuna por demais acentuada na literatura dos viajantes e memorialistas. No século passado, encontra-se apenas uma referência genérica ao cágado em Teixeira de Mello. Só bem recentemente os cientistas voltaram seus olhos para ela. Foram identificadas placas ósseas provavelmente da tartaruga marinha “Chelonia mydas”, popularmente conhecida por tartaruga verde, no sítio arqueológico de Santana. Esta espécie, juntamente com a tartaruga cabeçuda (“Caretta caretta”) e com a tartaruga de couro (“Dermochelys coriacea”), tem, no litoral norte-fluminense, um dos seus pontos de postura. Entretanto, o mais famoso réptil da região é o jacaré-de-papo-amarelo ou ururau, único representante da ordem “Crocodilia” no norte-noroeste fluminense. O rio Ururaí foi batizado por ele. Algumas lagoas, cursos d’água e localidades indicam sua existência pretérita ou atual, e a lenda do Ururau da Lapa é conhecidíssima em Campos. Dele fala Couto Reis, exclamando que “são em tanto número, como não poderá haver mais em outra parte do mundo.” A melhor descrição do animal é feita por Maximiliano, quando navegava o Rio Paraíba no trecho Campos-São João da Barra. Entrando na região pela extremidade oeste, Burmeister encontrou o jacaré-de-papo-amarelo na zona cristalina, em local bem afastado da planície fluviomarinha. A grande atração, agora, é o lagarto “Cnemidophorus litorallis”, da família Teiidea, que, pos si só, justifica a criação de uma Unidade de Conservação de Proteção Integral no trecho da restinga de Gruçaí.
Fonte: Jornal Folha da Manhã - Complexus
Publicada no dia 21-09-2008
A biodiversidade faunística (V) - Aves
Em se tratando da região norte-noroeste do Estado do Rio de Janeiro, as informações legadas pelos estudiosos e curiosos sobre a avifauna são mais fartas do que as relativas aos mamíferos. Nas pesquisas arqueológicas efetuadas na ilha de Santana, em Macaé, constatou-se que as aves representavam um item considerável na alimentação da comunidade nativa que ali viveu por muito tempo durante o século 8º d.C. Foram encontrados ossos de exemplares da família dos procelarídeos, aves oceânicas que, por um fenômeno ainda não compreendido pelos especialistas, com freqüência, morrem de exaustão nas praias. Verificou-se também a presença do atobá ou mergulhão (“Sula leucogaster leucogas-ter”), até hoje nidificando na ilha; da tesoura ou alcatraz (“Fregata magnificens”), da saracura ou trêspotes (“Aramides cajanea”), talvez do trintaréis (família “Laridae”), da juriti (“Leptotila rufaxila” ou “Leptotila verrauxi”) e possivelmente do pichorolé (ordem “Passeriformes”). O Roteiro dos Sete Capitães, do século 17, por mais de uma vez, fala da variedade e da riqueza de aves encontradas na planície goitacá. Manoel Mar-tins do Couto Reis, num discurso deslumbrado, diz que “As aves por suas diversas qualidades, e beleza, fazem um objeto maravilhoso, capaz de entreter por largos tempos a contemplação dos mais curiosos, e inteligentes naturalistas. Umas são próprias do país; e outras que de tempos, em tempos, descem de partes mais remotas a se apresentarem nele.” O cartógrafo está se referindo, sem dúvida, às aves nativas, várias das quais endêmicas, e as migratórias. Escusando-se por não dispor de elementos para uma descrição pormenorizada, o capitão aventa a seguinte classificação: 1- “aves de maior grandeza e vôo”, agrupando, sob este título, o mutum, já considerado raro à época; a inhuma, com um ferrão na cabeça capaz de identificar frutos e águas venenosas e de provocar feridas graves, segundo a tradição, além de dois nas pontas das asas; o urubutinga ou corvo branco, vulgarmente chamado de urubu-rei, vivendo mais nos sertões afastados; o jacu, dividido em jacutinga, jacuguaçu e jacupema ou jacu-caca; os gaviões de diversas cores e tamanhos, alguns capazes de dilacerar macacos ou de capturar patos em pleno vôo para seu repasto. 2- “aves de mediana grandeza”: entre elas, o pavó, que entoa roncos surdos em vez de canto; os tucanos de duas espécies, ambos com grande bico e plumagem que lhes conferem admirável beleza, emitindo voz rouca e triste; a araponga, cujo canto se assemelha às marteladas do ferrador e pode ser ouvido a distâncias avultadas; os pica-paus, com seus belos topetes, dividindo-se em três espécies; as oito espécies de pombas, algumas delicadíssimas; os araçaris, divididos em duas espécies, com cores que não agradaram nosso observador; o bacurau, o urutau e a coruja, de duas qualidades, são aves noturnas, com belas penas mas algumas com gritos altos e tão tristonhos que assombram, por isso mesmo supondo-se produzidos pelo eco. 3- “aves da mesma classe, porém do bico redondo, e com propriedade de falar o que se lhes ensina, e ouvem”: a arara, um papagaio grande e de plumagem vistosa; o anacam, uma arara de menores proporções; o juruaçu, a camutanga, o jurueu e a curica, todos papagaios, mas de espécies diversas e com vozes distintas; as maitacas, divididas em duas espécies, com diferenças no falar; o maracanã e a nandaia, também de duas qualidades; o sabiácica, de canto estimável posto que triste; os periquitos, com penas de vivo verde, entre claro e escuro; a camiranga, maior que o periquito; a tiriba, menor que o periquito; observa o autor que todas estas aves andam em bando e causam muitos prejuízos à lavoura, principalmente à de milho, ao passo que a carne dos papagaios é saborosíssima, principalmente guisada com arroz. 4- “passarinhos de canto agradável”: os sabiás, de três espécies não pela diferença de tamanho, mas pelo colorido das penas e pelo canto; os encontros, de penas azul-escuro e com mancha amarela muito viva na junção das asas com o corpo; o sanhaçu, de duas espécies, não é apropriado para a gaiola; os gaturamos, de duas espécies, cantando uma galantemente e outra um tanto rouca; os bicudos, os canários, as coleiras e os purumarãs de suavíssimo canto; acrescenta ainda o relator a esta lista o carajuá, cujo canto um escritor teria comparado ao de um anjo, observando, porém, que “... neste país, é bem para admirar, que nunca se ouvissem dar uma só voz, havendo imensos, quando descem dos sertões.” A classificação de Couto Reis continua com mais três grupos. Vale a pena completá-la num próximo artigo, dada a contribuição que este autor trouxe ao conhecimento da fauna da região no século 18.
Fonte: Folha da Manhã - complexus Publicada no dia 05-10-2008
A biodiversidade faunística (VI) - Aves
Aristides Soffiati Dando continuidade ao artigo da semana passada, completamos a classificação que o capitão de infantaria e cartógrafo Manoel Martins do Couto Reis deixou em seu célebre relatório de 1783: 5- “aves rasteiras, isto é, que pisam sobre a terra, não se servindo das asas senão para ajudar a carreira, quando são obrigadas, ou para treparem no poleiro, ou passarem algum estreito rio ou lago”: o macuco, maior que uma perdiz e com carne mais delicada que a desta; o juó, de duas espécies e com a carne e os ovos de qualidade igual à do macuco; o nambu, o xororó e a capoeira, com carne de sabor semelhante; as saracuras, cujo canto anuncia mudança de tempo para melhor ou para pior. 6- “aves dos campos, brejos, lagos ou rios”: a codorniz, muito perseguida pelas aves de rapina por viverem em campos desprotegidos, ocorrem mais nos campos de Jagoroaba (Restinga de Jurubatiba), onde as ervas são mais altas; taiuiú, raríssimo no Distrito, aparece pouco e por acaso, sendo, depois da ema, a maior ave do Brasil; o tabuiaiá, menor que a anterior e de excelente carne; o manguari, bastante parecido no tamanho com o precedente; o jaburu, de porte semelhante ao da cegonha, porém mais triste; as garças, divididas em três espécies, não têm carne própria para o consumo; a colhereira, de curioso bico em formato de colher; o carão, de duas espécies, tem o bico algo curvo, com uma delas de carne saborosa; o maçarico, dividido em oito espécies, com carne comestível; os frangos d’água, com duas espécies distintas, uma delas linda, dão bom prato; há ainda o ati, inumeráveis piaçocas e o quero-quero. 7- “aves aquáticas de pés natatórios”: os patos, que só se diferenciam dos domésticos quando velhos; as marrecas compreendem a patinha, o irerê, o xenquem, o queixo-branco, o pé-vermelho (segundo o autor a mais galante de todas) e outras que não enumera; os gansos chamados do mar, singulares pelo brilho das penas, contam com alguns raríssimos que só por acaso aparecem. Numa observação à parte, Couto Reis tece loas aos urubus, de duas espécies consoante seu registro, pelo serviço que prestam à higiene. Em suas palavras, “A incompreensível, e inescrutável sabedoria da Providência até na multiplicidade destas aves beneficiou este clima extinguindo por aquela via as podridões que se geram de tantos animais e insetos mortos pelas violências das cheias, das vazantes e outras causas; que o fariam sem tão pronto socorro, muito mais pestífero.” Como se vê, Couto Reis valeu-se de características múltiplas para compor a sua classificação, tais como anatomia, dimensão, faculdades, ambiente etc., classificação à qual não falta um traço utilitarista. Embora seja a mais completa descrição de que dispomos, até o século 18, para a região norte-noroeste fluminense, quiçá a única, não nos é possível, por ela, identificar todas as aves enumeradas, ainda mais porque não nos legou o militar nenhum desenho, como fizeram os naturalistas holandeses que visitaram o nordeste brasileiro no século 17, também eles se movimentando num universo pré-lineano. Seria muito, de qualquer forma, exigir do topógrafo minúcias que escapavam à sua formação. Esta lacuna será suprida pelo maior ornitólogo que passou por terras norte-noroeste fluminenses: Maximiliano de Wied-Neuwied. Além de sua famosa “Viagem ao Brasil”, legou-nos ainda “Abbildungen zur Naturgeschichte Brasiliens” (Weimar, 1823-1831), série de estampas coloridas retratando animais que coletou em sua excursão científica, e os monumentais “Beiträge zur Naturgeschichte von Brasilien”, em quatro volumes (Weimar, 1825, 1826, 1830, 1831, 1832 e 1833), tratando tecnicamente de anfíbios, répteis, aves e mamíferos. Este naturalista merecerá atenção especial quando voltarmos ao assunto.
A biodiversidade faunística (VII) - Aves
Maximiliano de Wied-Neuwied, naturalista alemão que fez uma excursão científica do Rio de Janeiro a Salvador, entre 1815 e 1817, registrou, em sua “Viagem ao Brasil”, uma infinidade de aves. Elas aparecem aqui em ordem de entrada, acompanhadas com as observações que se tornarem necessárias. No trecho de Cabo-Frio à Vi-la de São Salvador dos Campos dos Goitacás, o príncipe naturalista encontrou o chochi (saci ou sem-fim, “Tapera naevia”), bacuraus (conhecidos no sul do Brasil por curiango), o milhano preto e branco (o belo gavião-tesoura, “Elanoides forficatus”), uma enorme quantidade de urubus dividindo os despojos de um animal morto com um cão, sem se preocuparem com a presença da caravana de Wied, grandes bandos de maracanãs e periquitos, tucanos e o gavião cor de chumbo (o popular gavião pomba ou so-vi, “Ictinia plumbea”), hoje raro na região. Nas margens da Lagoa Pau-lista, foram avistados grupos do papa-ostras brasileiro (chamado vulgarmente de baiagu ou piru-piru, “Haematopus palliatus”), o caburé (“Glau-cidium brasilianum”) e o sabiá-da-praia (“Mimus ante-lius”). Mais adiante, topou o ornitólogo com maçaricos quero-quero, garças, gaivotas, andorinhas-do-mar e mar-recas. Na lagoa de Ubatuba, foi possível caçar o ibis de faces peladas e cor de carne (“Phimosus infuscatus nudri-frons”), uma nova espécie de milharfe (segundo Olivério Pinto, já identificada anteriormente como o conhecido caracara ou gavião do mangue, “Circus brasiliensis”) e um gavião classificado atualmente pelo nome de “Busarellus nigricollis”, além de se localizar um ninho, com os ovos, de bem-te-vi (“Pitangus sulphuratus”), em forma de forno, fechado em cima. Ao norte da lagoa de Ubatuba, onde a planície abrigava uma miríade de extensas lagoas, Maximiliano viu, pela primeira vez, o colhereiro (“Ajaia aja-ja”), que inutilmente os caçadores tentaram abater para a coleção do naturalista; novamente garças, patos, maçaricos e biguás. Também o tapicuru, nome comum aos ibídidas de cor preta brasileiros. A anhinga (também biguá-tinga, carará, miuá etc., “Anhinga anhinga”) foi perseguida em vão por Wied, que só capturou exemplares dela mais tarde. Além da Barra do Furado, de novo são vistos maçaricos, batuíras e baiagus alimentando-se de crustáceos, vermes e moluscos, como também uma espantosa multidão de marrecos e aves palustres, dentre as quais “Nettion brasiliense”, a espécie mais comum de pato em todas as regiões visitadas por Maximiliano, observação confirmada por Olivério Pinto. Ainda nas cercanias da lagoa Feia, foram capturados o ibis de cara vermelha, ou carão (“Phimosus infuscatus nudifrons”), e o caracará (“Polyborus plancus plancus”). Foi no rio Bragança, um dos defluentes da lagoa Feia, que Wied obteve o único exemplar do socozinho vermelho (“Ixobrychus exilis eryth-romelas”) em toda a sua viagem. Avançando pelas imensas planícies aluviais, em direção à vila de Campos, o grupo encontrou uma espécie de inambu correspondente à codorna (“Nothura maculosa”). Uma vez em Campos, os olhares de Maximiliano convergiram para a cidade, sua sociedade e sua economia. É preciso esperar que ele se ponha em marcha a caminho de São Fidélis para que as aves retornem ao seu diário de viagem. Logo encontrou o anum preto, na época com o nome científico de “Crotophaga ani”, Linn, e o cuco pintado (“Cuculus guira”, Linn.). Fala do anum branco, esclarecendo que descera havia pouco tempo dos planaltos de Minas Gerais para as baixadas costeiras e que, por isto, era ainda pouco conhecido na região. Nos ramos de uma figueira, descobre o curioso ninho do bico-chato, na verdade, o tirri ou relógio ou teque-teque (“Todirostrum poliocepha-lum”), como ensina Olivério Pinto. Numa densa floresta de légua e meia, estendendo-se da margem do Rio Paraíba do Sul até São Fidélis, ouviu o grito dos curiangos. Entre os puris das imediações de São Fidélis, notou que suas flechas eram enfeitadas na extremidade inferior com penas de mutum ou de jacutinga. Em nota de rodapé, Olivério Pinto explica que o nobre naturalista confundiu o “Crax alector”, espécie peculiar à região amazônico-guianense, com o mutum de bico vermelho, “Crax blumenbachii” Spix, típica da mata costeira do Brasil médio-oriental. De retorno a Campos pela margem esquerda do Paraíba, passou por uma ilhota com algumas árvores repletas de ninhos de guache (“Cassicus haemorrhous”), em forma de saco. No próximo artigo, vamos acompanhar as observações de Wied-Neuwied até sua travessia no Rio Itabapoana, entrando no Espírito Santo.
A biodiversidade fauniística (X) - Aves
Até as chuvas de novembro de 2008, eu vinha escrevendo uma série de artigos sobre a biodiversidade faunística das regiões Norte e Noroeste do Estado do Rio de Janeiro. As cheias, porém, criaram uma turbulência muito grande e levaram-me a tratar de assuntos emergenciais na minha coluna. Retomo, agora, o tema que eu vinha desenvolvendo com bastante serenidade. Os memorialistas do Norte Fluminense, no século XIX, não se saíram muito bem como naturalistas, nem mesmo o arguto Antonio Muniz de Souza. José Carneiro da Silva enumera, entre as aves, apenas o tuiuiú, a colhereira, o carajuá, o beija-flor, o mutum, o urubutinga. Por ser o tuiuiú a maior ave encontrada na região, meteu-se o futuro visconde a descrevê-lo, encontrando para um exemplar 11 palmos da ponta de uma asa à outra e sete palmos e meio da ponta dos pés até o bico, que, por si só, contava com um palmo e quatro dedos. Todo branco, tem o pescoço e a cabeça pretas. Como de hábito, segue-lhe os passos monsenhor José de Souza Azevedo Pizarro e Araujo. Visitando a lagoa de Cima, Muniz de Souza fica fascinado com as "... lindas aves, que, com seus variados cantos, desafiam as mais doces emoções! (...) Pássaros matizados de lindas cores fecham este encantador quadro: tucanos, araçaris, diversas espécies de sabiás, melros, saís de inumeráveis variedades, gaturamos, juós, jacutingas são constantes habitadores de suas florestas: outros há de arribação, como papagaios, periquitos, encontros, etc." Neste mesmo diapasão, José Alexandre Teixeira de Mello presta um depoimento comovido sobre as aves: "Uma vez, descia eu de madrugada, em canoa, pelo Muriaé, com minha família. Ao passarmos pela fazenda da viscondessa de Muriaé, eu, que adormecera à toada monótona dos remos na canoa, desperto de repente e assisto a um espetáculo original e único de que fora testemunha em minha vida: na baixada cortada pelo rio, em uma e outra margem, creio que todas as aves canoras da região se haviam congregado para comemorarem talvez alguma data gloriosa ou triste entre elas, por um concerto vocal matutino, a que a tecnologia estrangeira denomina matinée musicale, era admirável a harmonia daquele conjunto de mil vozes, regidas por batuta invisível, tão maravilhosamente se combinavam os cantos em uma ópera fantástica que nenhum Mayer-beer, nenhum Carlos Gomes, nenhum Wagner comporá jamais. Como que todas as aves canoras da região estavam ali representadas no que tinham de mais melodioso. Foi um espetáculo sublime que na ocasião nos pareceu sobrenatural, desvanecendo-se rápido como um sonho, mas deixou-me a mais grata e duradoura impressão." Despertando do arrebatamento, o autor arrola, como aves silvestres encontradas no município de Campos, o mutum, a jacutinga, a capoeira, a araponga, o sanhaçu, o grumará (comedor de milho nas roças), o jacu, a jacupema, o juó, o macuco, o nhambu, a rola, a juriti, a arara, o papagaio, o periquito e suas variedades (maracanã, querequeté, maitaca, o periquito sem cauda), o anu preto e o anu branco, o pica-pau, o tico-tico, o guache, o araçaí, o tucano, as andorinhas, o bem-te-vi, o siriri, a cambaxirra, a colhereira, o irerê (chenquem, queixo-branco, pé-vermelho, do sertão), a pacaparra, a garça, o frango d’água, o socó, a piaçoca, a sericória, o quero-quero, o carão, a lavandeira, o maçarico, a viuvinha, o pato selvagem, o franganito, o gavião, o urubu, o urubu-rei, a coruja, o caburé, o noitibó (ou bacurau), os sabiás (sabiácica, do bardo, laranjeira, da praia), o canário, o melro, o encontro, o papa-capim, a coleira, o avinhado, o gaturamo, o bico de lacre, o vira-bosta, o sanhaçu do coqueiro, o bicudo, o cabo-clinho, os tigês ou tiês (um azul e outro berne), os beija-flores, os saís, as codornas e os perdizes. Nada mais que repetição de autores que o antecederam. Nada menos que a continuação do gênero memorialístico. Agora, chegou a vez dos mamíferos.